19 de jan. de 2011

OS BONS E OS MAUS

Seria o triunfo da filosofia clarear os caminhos de que se serve a providência para atingir os fins relativos ao homem e, então traçar nestes caminhos os planos para indicar ao infeliz bípede como interpretar os ditames dessa providência e o rumo a seguir para ludibriar aos caprichos da fatalidade a que se dão inúmeros e diferentes nomes sem no entanto definí-la, porém, se imbuídos de respeito pelas conveções sociais e jamais nos afastando dos sentimentos que nos foram infundidos através dos ensinamentos recebidos nos acontece de colher somente espinhos ficando aos maus as rosas. Não seria então melhor entregar-se a torrente do que resistir a ela? A virtude por mais bela que seja, não seria fraca para lutar contra o vício? E o caminho seria tornar-se o pior partido e muito mais seguro agir como os outros?
Vejamos.
Momentos antes de chegar a notícia de que Isabel a desobediente princesa assinara a Lei do Abolição da Escravatura nasciam gêmeos em uma pequena senzala. Ao que, na época, o Senhor ou Proprietário dava o nome de Lucro. O Senhor, partindo da premissa de que Isabel não tinha a menor idéia do que assinara, entre um orgasmo e outro, não liberou o plantel. Deu nome aos gêmeos, Presumido e Não Presumido.
Os gêmeos cresceram como escravos e como tal recebiam o devido tratamento. Trabalhavam de sol a sol na lavoura entoando aqueles cantos deturpados oriundos da mãe África, no caso Vó África. Embora não se entendiam lhufas do que diziam haviam em tais cantos uma sonoridade incrível; Fazê buraco-ôô, botá semente-êê, se abaixa-aa para coiê-êê e vem o patrão-ôô papa bundá... Fazê buraco-ôô..., por esse trabalho recebiam uma refeição por dia e lugar para dormir.
Certo dia o Senhor, reuniu os escravos e sobre o alpendre de sua majestosa casa declarou;
-Creoulos! Esta manhã fui atingido por um raio de bondade e resolvi libertá-los, de ora em diante terão suas cartas de alforria, mas não para por ai a magnitude do estrago causado por tal raio. Aqueles que quizerem permanecer a meus serviços serão bem vindos, receberão pagamento, lógico que dele será descontado o aluguel do dormitório, as refeições, INSS, PIS , Imposto de Renda, Imposto Sindical, CPMF, IPTU, IPVA, etc, etc... Os demais peguem suas tralhas e vão pedir asilo para o Zé do Patrocínio e seus coleguinhas.
Embora gerados pelo mesmo esperma, cozidos no mesmo forno e saídos da mesma toca os gêmeos Presumido e Não Presumido possuíam índole diferentes.
Presumido resolvera que partiria virando as costas ao Senhorio e suas leis, comemorava tal fato exaltando sua condição de negro livre; I am free! I am free! Menos alcatrão, menos nicotina!
Não Presumido resolvera ficar; Serei trabalhador, pagarei meus impostos. Não tenho identidade mas em breve terei CIC e RG, serei bom! Ó como serei bom!
Assim são os desígnios do DNA, imprevisíveis.
Vamos seguir por ora o caminho de Presumido.
Ele tomou o caminho da cidade grande. A pé, durante trinta dias. Ninguém é louco de dar carona a um creoulo maltrapilho e zoiudo como aquele.
Na cidade procurou emprego mas, se não davam nem carona, iam dar emprego? Alegavam problemas com os juros altos, taxas de câmbio, invasão dos produtos asiáticos e principalmente que escravo é que nem peido, preso incomoda o dono, solto incomoda os outros.
Vendo a noite cair, Presumido aquietou-se em um beco, recostado em uma parede adormeceu. Na madrugada acordou ao ouvir uma conversa. Era um negro desengonçado entregando algo a um branco arrumadinho e cobrando vinte paus pela mercadoria. Após o branco retirar-se Presumido levantou-se e foi em direção ao desengonçado;
- O que é isso, recebendo dinheiro de branco?
- Ô black, queres também ganhar uma grana? Tô com compromisso e não posso vagar o ponto. Pago dez por cento. Vende a vinte o pacotinho!
- O quê é isso?
- É pó!
- Pó?
- É, pó! Pô!
- Pôôôô é pó! Os cara compra pó?
- Pô, ou pegas ou largas, tô com pressa!
- Pego, pô!
Assim Presumido começou sua escalada. Logo, começou a comprar o próprio pô, digo pó, obteve ponto próprio, primeiro periferia depois centro. Comprou roupa nova, terno de linho branco, sapato maria-mole e chapéu Panama. Assim vestido tentou entrar em um bar de bacanas. Barraram o creoulo. Enfurecido ele resolveu que ia entrar,
- Eu entro ou arrebento!
O porteiro, irmão de cor, mas com o dobro do tamanho de Presumido engrossou;
- Não entra nem arrebenta!
Dizendo isso partiu para cima de Presumido, já havia dado umas cento e doze porradas quando uma voz estridente ecoou;
-Páááára! Pára de bater no bófe!
Era um branco cheio de finesse.
- Por-te-i-ro! Por-te-i-ro cuida da portaria, das preciosidades cuido eu, tá? Euzinha, tááááá´!!!
Pegando a mão de Presumido e ajudando-o a levantar-se o finesse foi logo decidindo;
- Levanta meu zoiudinho. O que aquele Volvo fêz, te atropelou, quase estragou todo esse cisne negro!
- Pois é madamo, terminou com minha cara, rasgou minhas calças, óia aí, tá aparecendo quase tudo!
- Tua cara, tô nem ai! O quase tudo que eu vi foi o que me fêz te salvar! Quero vê o resto!
- Aqui?
- Claro que não fofolete de pixe, lá em casa.
Presumido foi. Acabou ficando. O veado era figurão, cheio das riquezas, latifundiário, influente, viviam felizes juntos. Latifundiavam e viviam, viviam e latifundiavam.
Agora vamos seguir os caminhos de Não Presumido.
Ele resolvera ficar trabalhando por um salário digno na propriedade do Senhorio. No primeiro mês ficou devendo trinta paus para o patrão, aqueles descontos todos. Resignou-se. No segundo ficou devendo quarenta, aqueles descontos todos mais a comida, operário não ganha comida, ou trás marmita ou paga. Resignou-se. No terceiro mês ficou devendo sessenta, aqueles descontos todos, mais a comida e mais o aluguel. Resignou-se. No quarto mês deu o rabo para o patrão, pegou suas coisas e resolveu ir embora. Resignado.
Largou tudo, o maravilhoso trabalho e a esperança de obter CIC e RG. Foi dar na estrada. Isso mesmo, caminhou três dias até ser abordado por um bando de fugitivos de um lugar chamado Palmares que há muito só comiam animais selvagens, e resolveram comê-lo. Não Presumido ficou atordoado;
- Tá zum... Tá zumbi... Tá zumbindo meu rab...
O chefe do bando ouvindo aquela lamúria espantou-se e ordenou;
- Mata! O desgramado sabe meu nome!
Tentaram, bateram tanto que até ele julgou-se morto mas não. Algum tempo após o bando partir Não Presumido ergueu-se e orgulhoso de sí lascou;
- Nego bom não morre!
Sacudida a poeira partiu novamente rumo a cidade. Lá procurou emprego, claro que não conseguiu, além das desculpas de sempre havia o fato de que dinheiro só em cueca de político.
Sem ter para onde ir a noite recolheu-se a porta de uma igrejinha. Adormeceu. Acordou na madrugada com a voz serena de um padre;
- O que fazes ai meu bom negro?
- Dormia ó Padre!
- Queres entrar? Estou sem sono e tenho cama quente para você!
Claro que ele aceitou. Foram ao dormitório do padre;
- Mas só tem sua cama padre?
- Nossa, meu belo negro, nossa cama!
Não Presumido relatou ao padre todo o ocorrido em sua vinda. O padre, com olhos de lobo mau aproveitou;
- Bom, já tens experiência, sem perda de tempo com ensinamentos!
Não Presumido, embora apavorado deitou-se e logo sentiu na nuca o bafo quente de seu benfeitor. Depois do bafo na nuca sentiu as mãos nos quadris. Depois sentiu que o padre tinha faltado a uma porrada de aulas no seminário.
O padre era que nem índio, se tivesse bambu era flecha e flecha. Quando o bambu terminou acabou a bondade do padre. Mandou Não Presumido sair da cama e tacando o pé no prato que acabara de comer atirou-o no meio da rua.
Explorado pelo patrão, estuprado pelo Zumbi, reestuprado pelo padre encontrava no céu, na camada de ozônio, o reflexo de seu sofrimento, doía-lhe o buraco negro.
Moribundo, entregou-se ao desespero, passou a viver como mendigo. Pegava tudo que lhe ofereciam. Pegou lepra, tuberculose, câncro duro, câncro mole, pneumonia simples, dupla, sertaneja, tiririca entre outras coisas e para que a vida não lhe fosse totalmente madrasta não só pegou coisas, também perdeu algumas. Perdeu peso, metade da visão, os movimentos dos dedos, dois programas da xuxa, o amor de Julieta-ta e a mais terrível das perdas, seu ponto G, Foi a última gota para iniciar sua reflexão;
- Quem sou eu? Como viverei sem meu ponto G? Oh, humanidade, já me tiraste a escravidão, o trabalho no campo, as rugas do ... Agora me arrancas o ponto G, ficarei sem referências, sem sentimentos, sem...se lá, nem sei onde era mesmo esse tal de ponto G!
Estava Não Presumido nesta lamúria quando aproximou-se uma carruagem linda, prateada, rodas de magnésio philipis, teto solar, trio elétrico, desembaçador traseiro, air bag triplo. Entre as escarlates sinaleiras lia-se Mitisiubitisi, só para constar sem IPI reduzido. Saiu dela um creoulo, isso mesmo, um creoulo vestindo um casaco floral, camisa em tom pastel e calça listrada que nem papel de parede de quarto da zona. Na cabeça um chapéu, no chapéu uma pluma rosa Não Presumido sentiu a mensagem ou é veado ou cafetão. Era seu irmão, Presumido.
- Tenho visto você , acompanhado seu sofrimento e chegou a hora de ajudá-lo. Já deves saber que ser bom não é bom. Deves estar ciente que a humanidade derrama glórias sobre aqueles que vencem mesmo que pelo mal.
- Estas certo Presumido meu Irmão, ensina-me a vencer. como o fizestes?
- Primeiro vendi ilusões aos fracos, depois uma bicha rica me acolheu, fiquei algum tempo a enfiar-lhe a vara. Um dia cansei e enfiei-lhe a faca. Herdei seus bens.
- Não, assim não! Veja as marcas que ficaram em você. Andas por ai vestido assim a indicar que para ter riqueza foi marido de veado.
- Bem melhor do que ser pobre e ter o rabo que é uma flor!

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